Nada melhor que a experiência
- Gabriella Vale Bentes

- 26 de jan. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 14 de nov. de 2022
Era uma terça-feira. Pela manhã, após as minhas práticas diárias de meditação, nesse dia, eu orei. Orando pude agradecer por estar cada vez mais segura do trabalho que desenvolvo com as crianças e adolescentes e também, pedi de todo o meu coração que todos os aprendizados e transformações benéficas que pudessem acontecer para as crianças através da minha presença, da proposta desse trabalho, do silêncio e do amor próprio fossem manifestados. Pedi que minha voz, minhas palavras, minha atitude, minha postura, minha escuta e o meu olhar fossem instrumentos de trabalho para o estabelecimento do bem maior de todos – essa oração se tornou meu mantra habitual antes dos meus trabalhos. Acendi uma vela, e mentalmente pedi licença à todas às crianças e adultos da escola para estar lá com eles.
Nesse dia entrei em 4 turmas diferentes. Estava agendado para que eu entrasse em 5 salas, passando no máximo 40 minutos em cada, porém eu estive por mais tempo em todas as turmas. Como de costume, no trabalho com crianças, o inesperado e espontâneo surge e a minha maneira de reagir é observar e acolher o que se apresenta, assim sendo, costumo oferecer mais tempo da minha atenção.
Nesse primeiro dia de aulas de meditação, na última turma que estive, o surpreendente se fez presente. Entrei numa turma com alunos do 5º ano, a maioria com 11 anos, alguns com 10 ou 12 anos. Começamos conversando sobre o que eles sabiam e imaginavam sobre o que é meditação. Recolho as falas, repito-as integralmente ou reconstruo de forma mais objetiva, mostro a eles que têm conhecimento ali, que a ideia da meditação permeia a nossa cultura, que eu estou escutando-os e que eu estou presente.
Nesse momento inicial a maioria das crianças se mostravam bem resistentes. Existiam várias conversas paralelas a minha fala e também uma resistência em tom de raiva e revolta pairava no ar. Já no início surge o assunto sobre como lidar com a raiva: falo um pouco sobre a natureza dos sentimentos e alguns me disseram que estão sempre com raiva e ainda, que “isso é bom porque faz eles serem fortes e permanecerem dispostos, acordados, sem preguiça”.
Através dessa conversa consegui escutar estratégias desenvolvidas por eles de como lidar com as emoções, principalmente a raiva e a tristeza, que são as emoções reconhecidas por eles como as “mais difíceis”. A professora dessa turma tinha me pedido para trabalhar justamente com aquilo que se tornou a conversa principal: o manejo dos sentimentos, e por isso conversamos alguns minutos a mais sobre os sentimentos – em comparação com as outras turmas, nesse dia.
Rapidamente a raiva tomou o lugar central da conversa:
G: O que vocês fazem quando estão com raiva?
Respostas: “eu jogo computador quando estou com raiva, porque posso machucar pessoas no jogo, desconto a minha raiva, mas posso ficar com mais raiva se eu perder no jogo”, “eu choro quando estou com raiva...e choro quando estou triste também”, “eu brigo com alguém, as vezes faço isso aqui na escola ou brigo com meu irmão mais novo”, “eu quebro algo”, “eu grito alto, não estou nem aí para a minha irmã”.
G: Como percebem que o que estão sentindo é raiva?
“Eu sinto muita energia, muita força, sinto que sou poderoso”, “eu sinto vontade de bater”, “meu rosto fica vermelho”, “eu fico quente”, “meus dentes ficam apertando (mandíbulas travadas), “eu não sinto raiva, sei que não adianta nada”.
G: E como é quando a raiva passa? Como vcs se sentem?
“Eu sinto tristeza depois da raiva”, “eu fico com sono”, três garotos respondem que a raiva nunca passa.
Até aqui, muitas vezes começo a analisar o que estou escutando. Porém, a minha tarefa hoje é praticar a plena atenção, é estar presente, sem julgamentos, por isso, cada vez que surge uma linha de raciocínio analítico na minha mente sobre o que as crianças falam eu percebo e paro, muitas vezes respiro profundamente. Nesse momento quero apenas acolher o que é dito no grupo e, dessa forma brotam posturas, olhares e atitudes genuínas de me conectar com a vida que pulsa aqui e agora.
A maioria das crianças gostaram de falar, gostaram de ser ouvidas. Aviso que seguiremos para o segundo momento do encontro e depois de algumas reclamações – vários querem continuar falando – nós seguimos: agora vamos nos deitar, em círculo, com a cabeça virada para o centro, enquanto eu passo por cada um deles tocando uma Tigela Tibetana por cima de seus corpos. A proposta é meditar, relaxar através do som, se possível, perceber a vibração do som em seu corpo e estar em silêncio observando os pensamentos enquanto eu me locomovo pela sala. Expliquei o exercício de observar os pensamentos inicialmente, falando sobre o que é meditação. Gosto de começar o trabalho com as tigelas, pois percebo que é mais fácil iniciar o mergulho no mundo sutil com algo visível e sonoro. Toco três vezes em cada criança. Enfatizei que já estaríamos exercitando também a paciência já que eu iria passar em um de cada vez e na turma tinham por volta de 25 alunos.
Um a um eles foram se acalmando e se entregando. Ao final desse momento, ficamos em silêncio por 3 minutos e os chamei para irem retornando devagar, com suavidade. Duas crianças estavam chorando ao sentarem-se. Perguntei como foi a experiência para o grupo, e eles foram desabrochando. Aqui vou escrever as histórias mais marcantes para mim, mas é importante que vocês entendam que existem histórias não contadas que fizeram com que aquele momento acontecesse em toda a sua intensidade.
Menino, C. 10 anos: Começou a chorar muito e vários colegas da turma foram abraçá-lo. Ele ficou no colo de alguns dos amigos e nos contou:
C.: - Lembrei da primeira vez que fui à escola.
Aparentemente essa frase não dizia muito sobre o choro catártico que ele estava vivendo. Respirei fundo e perguntei de forma simples, direta, despretensiosa:
G: - O que você lembra deste dia?
C.: - Meu pai me levou até a escola. E nunca mais voltou, eu nunca mais vi ele.
C. chorava muito, sua fala, sua entrega para a experiência libertou outras falas, outras liberações.
Menino, N. 12 anos: - Eu não gosto de dormir porque acontece a mesma coisa que aconteceu aqui, agora. Quando eu fecho os olhos eu vejo meu pai correndo e eu fico correndo atrás dele, mas nunca consigo alcançá-lo.
G: - Como você se sente ao ver isso?
N: - Tudo bem, tanto faz.
Nesse momento N desvia o olhar mas ainda está inquieto, então eu pergunto diretamente, de forma simples e calma:
G: - O que aconteceu com seu pai?
N: - Ele morreu com 6 tiros na cabeça e eu sei que ele não vai voltar.
G: - Como você se sente ao fechar os olhos?
Repito aqui a pergunta sobre o ‘sentir’ de uma forma diferente, estou exercitando o autoconhecimento emocional com N.
N: - Eu não gosto. Eu tenho muita raiva, brigo com qualquer um aqui e ganho.
Continua falando sobre as artes marciais que luta e fala especificamente de uma professora que diz para ele vir lutar na academia quando estiver com raiva e não brigar na rua. Esse garoto repete algumas vezes as mesmas histórias, que provavelmente estão se repetindo também em sua mente. Quando eu passo a fala para outra criança ele continua falando com seus colegas mais próximos. Parece que ele é considerado “o mais forte da turma”, é também o maior em altura.
Menina, A. 11 anos: - Estou chorando porque percebo que a vida é muito triste, a vida de todas as pessoas. Por isso que muitas vezes eu quero me matar. Meu pai e minha mãe só brigam, sem parar.
Acontecem várias reações nesse momento, desde crianças que dizem “ah, ela só fala de se matar” até outras que ficam assustadas. Ela chora e conta um pouco sobre a vida familiar.
Menina, F.11 anos: - A minha mãe trabalha muito, ela nunca está em casa, então eu arrumo a casa para ela quando chego da escola (todas essas crianças estudam em turno integral, de 8h as 18h). Gostaria de conhecer o meu pai, mas ele “só serviu para me fazer” minha mãe diz.
Em 10 minutos todas as crianças da turma estavam chorando. Lembrando-se de suas tragédias pessoais e entrando em contato com dores que aparentavam ter sido pouco expressadas, pouco ouvidas, pouco compreendidas. Dores que sustentavam o ‘campo de revolta’ que pairava no ar, e que se desmanchou na medida em que as crianças foram contando suas histórias, falando o que entendiam daquilo que elas tinham experimentado. Algumas declararam que nunca tinham conversado com ninguém sobre tudo aquilo. Eu permanecia em estado meditativo escutando as crianças, estava com toda a minha atenção ali, apenas dividia a minha atenção com um mantra mental “que eu seja instrumento da paz”. Rapidamente percebi que não havia nada a ser dito por mim além das perguntas, assim sendo, ofereci todo o meu amor e carinho através do meu olhar e da minha postura.
Acontece que era a última aula do dia e em breve eles teriam que sair da sala – aquele ambiente que estava acolhendo suas mágoas, tristezas e raivas – e eu tinha de dar um fechamento para ajudá-los a criar um limite interno para aquela experiência, uma borda, uma faixa de segurança. Pedi a todos que se levantassem e sem sensacionalismo, algumas das crianças achavam difícil se mexer em meio do caos que estava transbordando delas, porém todos levantaram e muitos ainda chorando fizeram o exercício seguinte: Sopro há com abertura do cardíaco – inspirando profundamente e soltando o som “há” na expiração. Na inspiração nós esticamos os braços, com a mão fechada em punho, depois na altura do coração e colocamos as mãos em contato com o coração, no centro do nosso peito. Fazemos uma rápida massagem nesse local, ainda durante a inspiração, e na expiração soltamos o ar, abrindo bem o os braços e soltando também o som “há”.
Algumas crianças sentiram prazer em gritar “há” bem alto, enquanto outras se aprofundavam na respiração, cada vez mais. A maioria foi se acalmando, parando de chorar e trazendo uma expressão de leveza no rosto, pois fizemos esse exercício várias vezes. Soltar sons na expiração nos movimenta internamente, trabalha a nossa força interna e a capacidade que temos de colocar para fora do nosso corpo aquilo que não queremos mais. A conexão com o coração aconteceu de forma intuitiva, foi proposta através da minha intuição e as crianças aproveitaram o movimento de abrir o peito, contrapondo o movimento de ‘ombros caídos’ que naturalmente expressamos quando estamos tristes.
Após esse exercício, demos as mãos e formamos uma roda, com nossos corpos bem próximos. Algumas crianças ainda desejavam falar e o menino N. repetia várias vezes a mesma história:
N: - Na minha última escola os garotos me deixaram com muita raiva. Eu bati muito neles e ninguém queria ser meu amigo, eu fiquei sozinho. Foi melhor mudar de escola, agora estou aqui e tenho medo de ficar sozinho de novo.
A partir da fala dele eu disse: hoje vocês puderam perceber que sentem os mesmos sentimentos, mudam apenas os momentos, os motivos. Faz sentido, isso que estou dizendo? Um grande sim ressoou na sala. A partir de hoje vocês podem se apoiar e contar mais uns com os outros. N., olha quantas pessoas estão escutando você falar. Agora, nesse momento, você se sente sozinho?
- Não, sinto que tenho amigos.






Uau!! Que história!! Fiquei emocionada de ler.... esse garoto que descobriu que tem amigos, que forte! que beleza de encontro. 💓 continue fazendo seu trabalho com as crianças! quando somos crianças as coisas nos marcam pra sempre, seja para o bem ou para o mal.... e vc marcou o coraçao dessas crianças, trazendo cura e libertação. parabéns 💜
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